terça-feira, dezembro 27, 2005

ENTRE A CRUZ E A ESPADA

Nunca São Paulo tinha sido tão especial quanto desta vez, com a nada tranqüila companhia de Ivany. Para quem não conhece, Ivany é superlativamente exagerada, é mais melhor de boa, tem um plus adicional a mais, uma pessoa totalmente “de com força”. Fala muito, fala alto, fala tudo. Ri muito, ri alto, ri de tudo. Chora muito, chora alto e chora que só a peste...

Saindo do Aeroporto “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante” (tem um nome parecido com esse o Aeroporto do Recife), lá vamos nós para Guarulhos num vôo modorrento e sem grandes novidades. A não ser a presença de um moço avariado, lascado, quebrado, cheio de escoriações e hematomas, com o braço direito todo enfaixado e com cara de dor. Eu, sentada no meio e já com o cinto devidamente afivelado, a cadeira na posição vertical, apenas esperando a ridícula (porém necessária) mímica de segurança das aeromoças, sentia, do meu lado direito, o perfume do xampu novo (alto nível ou mais) de Ivany; comprado especialmente para a viagem, e à minha esquerda, algo de fétido que tomava conta das minhas apuradíssimas narinas. Não sei se as purulentas perebas ou aquele odor característico de quem não cruza com o chuveiro há alguns dias.

Ia vomitar. Óbvio que ia vomitar. Mas não existe nada mais incômodo no avião que vomitar no saquinho. Primeiro, porque você, passando mal, tem que acertar todo o conteúdo expelido naquele pouco diâmetro. E depois da obra feita, paira a dúvida: levantar e jogar no banheiro (com todos os passageiros lançando-lhe um olhar de comiseração e asco) E também porque se fica sem saber o que fazer o saco cheio: dar à aeromoça ou levantar-se (ainda zonzo) e jogar no banheiro? Desisti de vomitar e me lembrei que, em poucos minutos, talvez antes que o avião decolasse, os dois Dramin que eu havia tomado meia hora antes deveriam iniciar o seu efeito doppping e eu dormiria a viagem inteira. Tenho fortes enjôos em viagens, mas não tenho medo de avião. Meu medo é de altura. Se avião voasse mais baixo, eu viajaria mais relaxada. Isso sem falar nas informações completamente desnecessárias do piloto que, exatamente no início do nosso cochilo, cumprimenta os passageiros para informar que a aeronave está voando a não sei quantos mil pés de altura e a não sei quantos mil quilômetros por hora. É o tipo da informação que deixa qualquer acrófobo em síncope.

Pensei: vou logo ao banheiro pra não ter que ir durante o vôo e dormir um sono só. Fui comentar com Ivany sobre a minha partida e ela disse: “Coitado do homem, Aninha, vai ter que se levantar, espere mais um pouquinho”. Esperar não ia fazer diferença pra ele; por isso, pedi licença, desculpas e agradeci. Realmente, o rapaz fez um esforço fenomenal para se levantar e se sentar na poltrona novamente e ainda disse: “o pior é que estou com um corte grande aqui no meio da perna que toda vez que estico vou na lua e desço”. Fiquei com peso na consciência (e olhe que consciência cearense pesa muito mais), mas, fazer o quê? É a lei das selvas. Inda mais, tenho um rim atrofiado que vez por outra dá sinais de sua existência.

Quando retornei do toalete, Ivany disse: “agora quem quer ir sou eu”. E lá se vai a bela pedir ao homem que esticasse seus prováveis inúmeros pontos mais uma vez para que ela sanasse seu problema fisiológico. O homem faz cara de coitado novamente, mas foi gentil. Depois que retornou, Ivany voltou, comentou: “o que será que ele teve? Deve ter isso um acidente gravíssimo”. Afe Maria, essa pergunta me doeu até a alma. A curiosidade de Ivany certamente iria me fazer passar alguma vergonha. Disse apenas um “sei lá” e me virei para dormir, grogue da superdosagem do anti-enjôo. Nessa hora, o homem tira de uma pasta um envelope e uns papéis com cara de Boletim de Ocorrência. Ivany me cutuca e diz: “lê o que foi”. E respondo o óbvio: EU NÃO ENXERGO! Ivany sabe das minhas limitações oculares e fica tirando onda. Ela deixou pra lá.

Passa a aeromoça com seu carrinho cabe-tudo, e serve os passageiros. Como o enfermo estava com a mão direita enfaixada, obrigamo-nos a ser gentis: abrimos a caixa do sanduíche do rapaz, retiramos o plástico do pão-sem-graça, tiramos o lacre da água mineral e finalmente eu já podia dormir. Fui recebida de braços abertos por Morpheu. Comecei a dormir me lembrando dos velhos tempos do Rio Doce/CDU, em que eu cochilava o percurso inteiro, isso quando pegava um lugar pra sentar, claro; uma hora de ônibus de Olinda até a Cidade Universitária. Nunca tive uma carona para ir à UFPE. Estudante de Olinda era tudo liso. Só Ivany tinha carro, ou melhor, um Fusca. Mas eu não a conhecia.

Com essas lembranças, já estava sonhando, quando, de repente, Ivany me puxa bruscamente pelo braço e diz: “Aninha, tu tá dormindo no braço lascado do homem, ele tá todo sem jeito. ACORDA!” O puxão foi tão grande, que até hoje meu braço tá roxo. Que saco, que tédio!!! Bem, então eu não poderia dormir, né? Resolvi lavar o rosto. Pedi mais uma vez para ir ao toalete e o rapaz mais uma vez reclamou da perna e eu fiquei mais uma vez com a consciência pesada. No banheiro, fiquei olhando para o espelho e pensei: vou conversar alguns detalhes de trabalho com Ivany e deixo para descansar no hotel. Passei água no rosto e fiquei um tempo naquele micro wc pensando como eu poderia otimizar a viagem (curso, cliente a visitar, amigos para trocar idéias, um jantar no Fasano (ixi, viajei!!!!! Já tava nas elucubrações, era hora de retornar ao meu assento).

Quando voltei, estavam Ivany e o rapaz conversando e a jornalista me insere no contexto: “olha, Aninha, o Genival aqui é caminhoneiro, bateu com a carreta lá na BR-232, ficou dez dias internado no Hospital Regional do Agreste e tá voltando pra casa, né Genival? Com saudades das filhas Aline e Amanda... Ele teve traumatismo crânio-encefálico, fratura de costelas, a coxa inteira costurada, pense... Só saiu quando já estava isocórico, consciente e orientado. Vê só, ele tava com o caminhão cheio de picolé da Kibon, quem fez o carregamento colocou peso demais na porta e o veículo perdeu a estabilidade, sobrou na curva e deu perda total. Ainda bem que tava no seguro, né, Genival? E ele tá feliz da vida porque vai chegar a tempo do aniversário da mulher, Niziete, que nasceu lá em Paulista e morou naquela rua principal, a que engarrafa. Já pensou?”

Não acreditei! ela havia feito a apuração mais rápida e detalhada que eu já tinha visto. Essa é a Ivany que eu conheço. Olhei para ela e tivemos a genial idéia de colocar o lazarento na janela. Aí, me veio mais uma dúvida: eu permaneceria no assento do meio, sentindo o desagradável odor do rapaz, ou iria para o lugar dele - já infecto, com certeza -, deixando minha amiga compartilhar do meu sofrimento também? Fiquei com nojo e fiquei no meio.
Olhei para o aeromoço, pedi uma cerveja e ouvi o alento do piloto: “tripulação, preparar para o pouso”.

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